Douglas Brose (esq.), Tri Campeão Mundial
O karate-do não
nasceu um esporte, assim como também não nasceu uma arte marcial. Não nos moldes como
o conhecemos na contemporaneidade.
Com história bem mais antiga, diligente e conflituosa, o karate tem origem diferente do
judo (arte suave), legítima arte marcial japonesa que possui planejada e
estruturada data de nascimento, quando em fevereiro de 1882 o Prof. de Ed. Física Jigoro
Kano (28/out/1860 - 04/mai/1938) fundou em Eishoji, Tóquio, capital do Japão, o Kodokan (Instituto
do Caminho da Fraternidade), primeira escola de judo da história.
A partir do século XV,
em meio a revoltas sociais motivadas
pela intenção de tornar o arquipélago Ryūkyū um reino unificado, o karate tem origem remota em Okinawa, ilha mais importante daquele arquipélago, que veio a ser anexado ao Império do Japão somente a partir de 1879.
Arquipélago Ryūkyū ao sul do Japão
Como parte deste
processo de unificação político-administrativa preconizado em 1429 pelo então
rei Sho Hashi, as províncias de Okinawa foram o berço do desenvolvimento de
uma luta desarmada durante e após a proibição do porte de quaisquer tipos de
armas, fossem bélicas, folclóricas ou mesmo ferramentas agrícolas como o eku,
sai, bō, kama, nunchaku, tonfa, entre outras utilizadas na prática do kobudo (caminho das
antigas artes marciais de Okinawa). Sem outra opção, seus habitantes
passaram a praticar formas de autodefesa sem armas em meio ao sigilo até da
madrugada, utilizando-se do próprio corpo como instrumento. A esse novo método
de autodefesa foi dado o nome de Okinawa-te (mãos ou técnicas de Okinawa).
Treinamento ministrado por Shinpan Gusukuma Sensei em frente ao Castelo Shurijo em Shuri, Okinawa, em 1938
Ao observarmos interpretações ocidentais como as de Ferreira (2004) e Tubino (2007), entre outros, identificamos as artes marciais como disciplinas físicas e mentais que codificadas
em diferentes graus, estilos e escolas promovem o autodesenvolvimento de
seus praticantes. Embora também sejam eficazes meios de autodefesa por
meio de técnicas de combate coerentemente sistematizadas, as artes marciais
diferem das lutas em geral por possuírem cunho filosófico, finalidade educacional e harmônico desenvolvimento físico, mental e espiritual em
seus adeptos.
Consideram-se Artes Marciais aquelas que começaram nas práticas guerreiras da Ásia. Qualquer outro tipo de luta não pode ser confundido com Arte Marcial. Reforçando, uma prática para ser pontuada como Arte Marcial ou Esporte derivado de Arte Marcial precisa ter alguma ligação histórica com os regimes feudais asiáticos. O termo Marcial corresponde ao uso militar dessas lutas, que se desenvolveram ao acrescentar referências em crenças religiosas, antes de se tornarem esportes (TUBINO, 2007).
Quando o então príncipe herdeiro Hirohito, em viagem a Europa, fez escala em Okinawa em 1921 e assistiu
a uma demonstração de karate, conhecido à época como “mãos ou técnicas de Tang/China” a partir da fusão ocorrida séculos antes entre a autóctone luta
Okinawa-te e o wushu (kung fu) trazido da China por meio do intercâmbio mercantil marítimo, estabelecia-se a descoberta daquela provinciana luta de
Okinawa ao poder político central do Japão.
Estudiosos acreditam que o famoso chinês Kung Siang Chun (Koshokun
em japonês) era um enviado chinês durante a dinastia Ming, enquanto que outros
citam referências a um marinheiro, sobrevivente de um navio afundado. Ainda outros
insistem que Koshokun foi residente da vila de Kumemura por mais de dez anos.
Enquanto parece certo que esta pessoa realmente existiu, os registros
históricos escritos nos deixam com apenas um fato indisputável: a despeito de
quanto Koshokun ou qualquer outro chinês ensinou a respeito de lutas aos
nativos de Okinawa, parece não haver dúvida de que eles, que se consideravam de
uma casta inferior aos chineses, foram absorvidos pelos fundamentos filosóficos
das refinadas artes marciais chinesas, e buscaram associar-se a qualquer coisa
que fosse chinesa (HASSELL, 1991).
Aproveitando-se da boa impressão que sua demonstração de karate causara ao Imperador do Japão naquela ocasião, o professor do ensino formal de Okinawa, Gichin Funakoshi, aceitou o convite para apresentar o karate na capital japonesa, o que foi pioneiramente realizado por ele em 1922 quando conheceu o Prof. Jigoro Kano, membro do Comitê Olímpico Japonês e membro do Dai Nippon Butoku Kai (Sociedade da Virtude Marcial do Grande Japão), entidade do Ministério da Educação que regulamentou e reconheceu as antigas lutas japonesas (Bujutsu) em artes marciais modernas (Gendai Budo) durante a Restauração Meiji, que foi um conjunto de ações governamentais que transformaram o Japão feudal em uma sociedade moderna, de acordo com os conceitos ocidentais.
A partir desta parceria e amizade, o okinawano karate propagado em Tóquio por Gichin Funakoshi adequou-se as exigências do Dai Nippon Butoku Kai para que fosse finalmente reconhecido como arte marcial. Dentre estas ações, destacam-se:
- Adoção de influências metodológicas do judo Kodokan como o uso de uniforme (karate-gi) e faixas coloridas com o intuito de identificar a evolução individual dos alunos de uma mesma turma;
- Tradução das técnicas individuais e kata (formas padronizadas de sequências de treinamento individual com finalidade do resguardo das técnicas ancestrais) e metodotização do ensino das técnicas do karate praticado em Okinawa sob dialeto uchinaguchi (língua okinawana);
- Mudança ocorrida em 1935 dos kanji (caracteres) que compunham o termo karate (mãos ou técnicas de Tang/China) para karate-do (caminho das mãos vazias) sem com isto alterar sua pronúncia, o que representava mais fielmente o método de defesa sem armas, além do espírito do karate-do quanto a esvaziar-se a mente e o corpo de todas as vaidades e desejos terrenos, enfatizando assim o aspecto filosófico da arte.
Arte Marcial com Janela Esportiva
Considerando-se que esporte é todo exercício físico específico que tem como objetivos o desenvolvimento físico e a competição, sob regras definidas, entre oponentes a fim de apurar um ou mais vencedores, e que é institucionalizado por uma entidade gestora, que pode ser uma associação, uma liga, uma federação ou uma confederação, que regulamentam por meio de regras o esporte de sua competência, observamos que o karate-do, enquanto arte marcial, teria muito trabalho pela frente para desenvolver-se e, organizadamente, difundir-se enquanto esporte.
Foi graças ao insight de Masatoshi Nakayama, Instrutor Chefe da Nihon Karate Kyokai (NKK - Associação Japonesa de Karate), que um fundamental passo foi dado quando ele, após viagem a China, começou a desenvolver os primeiros ensaios de regulamento para a realização de torneios de karate, ao projetar competições de shiai kata, com base nas avaliações da ginástica artística, e shiai kumite aos moldes do kendo sob o conceito de sundome (controle absoluto). De fato, a primeira competição de karate da história foi realizada em outubro de 1957.
Foi graças ao insight de Masatoshi Nakayama, Instrutor Chefe da Nihon Karate Kyokai (NKK - Associação Japonesa de Karate), que um fundamental passo foi dado quando ele, após viagem a China, começou a desenvolver os primeiros ensaios de regulamento para a realização de torneios de karate, ao projetar competições de shiai kata, com base nas avaliações da ginástica artística, e shiai kumite aos moldes do kendo sob o conceito de sundome (controle absoluto). De fato, a primeira competição de karate da história foi realizada em outubro de 1957.
Antes do Mestre Funakoshi morrer, comecei a pesquisar a ideia de desenvolver torneios. Quando perguntei ao Mestre Funakoshi sua opinião, se recusou a comentar. Ele estava preocupado que se os conceitos de torneio se tornassem muito populares, os estudantes poderiam abandonar os princípios básicos e praticar somente para as competições. Ele sabia que nós teríamos as competições e que seriam importantes para a internacionalização do Karate, mas queria isto claramente entendido, que a coisa mais importante seria sempre o treinamento básico. Por isso que enquanto tenho sido o Instrutor da NKK, o treinamento tem sido centrado ao redor dos princípios básicos do Mestre Funakoshi: Kihon, Kata e Kumite. Fortes bases primeiro, torneios depois.
Eu vi narizes e mandíbulas quebradas, dentes arrancados e muitas orelhas partidas. Eu estava dividido entre a crença que o Karate fosse qualquer coisa que pareça confronto. Com efeito, nosso torneio em 1957 foi o primeiro campeonato de Karate do mundo. Meu grande interesse naquela época era assegurar que o Karate, se déssemos um aspecto esportivo, não perdesse sua essência como arte. Portanto, trabalhei muito projetando a competição de Kata, e norteei as regras nas da patinação e da ginástica. Minha esperança era preservar a essência do Karate-Do como uma arte de defesa-pessoal e abnegação, e para prevenir a excitação de confrontar que provém da transformação do Karate em mero esporte.
Quando eu for para o céu, espero que Mestre Funakoshi não me bata por introduzir o esporte Karate (...) mas eu não penso que ele esteja magoado. Ele queria que eu expandisse o Karate-Do ao redor do mundo e o esporte Karate tem certamente feito isto.
Masatoshi Nakayama (13/abr/1913 - 15/abr/1987)
Origem da WUKO/WKF
Após décadas de rápido crescimento mundial, várias
competições começaram a atrair atletas de karate de vários países durante a
década de 1960.
Os diferentes estilos de karate, a diversidade de regras e a
falta de protocolos unificados que governam qualquer tipo de competição
indicaram a necessidade de criar um órgão governamental internacional composto
por Federações Nacionais de Karate unidas que pudessem começar a abordar essas
questões por uma perspectiva global unificada.
Ryoichi Sasakawa, então presidente da Federação Japonesa de Karate (JKF) e Jacques Delcourt, presidente da União Europeia de Karate (EKU), propuseram conjuntamente uma série de reuniões que produziriam não apenas as
primeiras regras internacionais amalgamadas para o karate esportivo, mas também
o estabelecimento da União Mundial das Organizações de Karate (WUKO) em 10 de
outubro de 1970.
Tóquio, Japão, foi o local onde a WUKO foi fundada na mesma semana de realização do primeiro Campeonato Mundial da história. Já em Portland, Oregon (EUA), sediou-se a primeira reunião do
Comitê Diretor da WUKO, cujo objetivo era estabelecer as bases para o futuro do karate esportivo, agora unificado.
A integração de várias novas organizações durante os
anos 90 viu o número de membros da WUKO aumentar para 150 federações nacionais naquela década.
Portanto, fez-se necessário um novo nome que refletisse com mais precisão o
tamanho e o escopo da organização. O nome da primeira organização internacional
que representa o karate esportivo foi assim alterado para Federação Mundial de
Karate (WKF) em 20 de dezembro de 1992.
Passados quarenta e seis anos da realização de seu primeiro Campeonato Mundial, finalmente os valores educativos do karate-do encontrariam convergência nos princípios e ideais olímpicos: amizade, excelência e respeito. Foi na 129ª Sessão do COI realizada no Rio de Janeiro, RJ, que o karate foi integrado ao Programa Olímpico dos Jogos Olímpicos Tóquio 2020.
O lendário Budokan foi palco do karate nos JO Tóquio 2020
Cronologia da Estruturação Esportiva Mundial do Karate
1957: Primeiro torneio de karate da história – Masatoshi Nakayama (NKK) - 1959: Fundação da FAJKO – atual JKF
- 1963: Fundação da EKU – atual EKF
- 1964: Fundação da JKF – Gōgen Yamaguchi do Goju Ryu foi co-fundador
- 1970: Fundação da WUKO – Jacques Delcourt (EKU) e Ryoichi Sasakawa (JKF)
- 1975: PUKO (atual PKF) é fundada nos EUA
- 1980: WUKO (atual WKF) introduz categorias com divisões de pesos
- 1981: PUKO (atual PKF) realiza o 1º Campeonato Pan-Americano
- 1985: COI reconhece a WUKO provisoriamente
- 1989: SUKO (atual CSK) é fundada no Brasil
- 1993: WKF aglutina a WUKO
- 1993: EKF aglutina a EKU
- 1993: Karate estreia nos Jogos da América Central e Caribe em Ponce, Porto Rico
- 1994: Karate estreia nos Jogos Asiáticos em Hiroshima, Japão
- 1995: Karate estreia nos Jogos Pan-Americanos em Mar del Plata, Uruguai
- 1995: PKF aglutina a PUKO
- 1999: COI reconhece a WKF em definitivo
- 2015: Karate estreia nos Jogos Europeus em Baku, Azerbaijão
- 2016: COI integra o karate ao Programa Olímpico
- 2021: Karate estreia nos Jogos Olímpicos Tóquio 2020
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